segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Coordenação das acções e identidades: pistas de leitura









A pedido de um grupo de mestrandas, que estão a iniciar o seu trabalho sobre a temática da coordenação das acções, acção colectiva e identidades, coloco aqui um primeiro post sobre a temática.


No quadro da sua actividade quotidiana, os actores sociais necessitam de coordenar a sua acção com a de outros actores, em situações e contextos diversificados. Esta coordenação é problemática, mais do que poderia parecer a um olhar ingénuo. Os próprios actores sociais sentem subjectivamente este seu carácter problemático, quando se interrogam, por exemplo, sobre: "Como devo agir neste contexto?"; "Será que vou agir de forma ajustada, ao agir assim?"; "E se, ao agir assim, tudo 'correr mal'?"; etc. Na verdade, coordenar-se com o(s) outro(s) envolve uma permanente monitorização sobre si próprio e sobre os outros. Tentar-se-á explicitar aqui, brevemente, o facto de esta coordenação depender amiúde da existência de diferentes formas convencionais de acção e das correspondentes formas identitárias (por exemplo socioprofissionais) a elas associadas.

De forma muito simplificada, podemos dizer que a coordenação social é possível em função da existência de repertórios de acção, guias mentais de acção, que são comuns aos diferentes actores em situação de interacção. Assim, por exemplo, quando duas pessoas conversam, conseguem fazê-lo porque possuem um conhecimento comum do fundo linguístico que caracteriza a pertença a uma determinada comunidade de falantes (uma língua comum). Da mesma maneira, quando seleccionam e escolhem determinados cursos de acção, fazem-no em função de repertórios de "regras" e convenções que orientam a sua acção e permitem a coordenação dessa mesma acção. É pela agregação de acções individuais realizada a partir de repertórios comuns de convenções sociais, por exemplo, que se constrói, de acordo com este ponto de vista, a acção colectiva. O que é interessante notar, do ponto de vista de uma análise da acção colectiva dos grupos socioprofissionais, é que, no seio da modernidade política, existe um conjunto, limitado, de repertórios de convenções - quadros de referência simultaneamente cognitivos e normativos - que tende a ser mobilizado pelos actores como forma de engrandecimento público da sua ocupação ou profissão e de justificação social da sua existência. Assim, é possível analisar, v.g., os discursos dos porta-vozes - como dos profissionais de uma determinada área profissional - como contendo elementos de diferentes gramáticas justificativas que visam engrandecer e justificar publicamente a respectiva ocupação e profissão. Ora, a inserção da acção dos profissionais nos cursos de acção definidos por estas gramáticas socialmente disponíveis produz diferentes figurações da profissão e, assim, tende a carrear consigo diferentes formas de identidade socioprofissional. Ou seja, é ao inserirem-se em diferentes lógicas de justificação e engrandecimento público da sua profissão que os profissionais constroem uma boa parte da sua identidade profissional. Sem perder de vista que estamos a falar de realidades de extrema complexidade aqui apenas simplisticamente afloradas, podemos dar como exemplo de uma análise deste tipo aquela que José Manuel Resende tem vindo a realizar em torno do professorado do ensino secundário público no período do Estado Novo. Deixa-se abaixo um exemplo desta análise, que sintetiza muito bem estas relações entre: i) formas de justificação pública da profissão, associadas a diferentes ii) gramáticas convencionais, que se plasmam em diferentes iii) concepções, práticas e discursos pedagógicos, que envolvem diferentes iv) sentidos identitários. Note-se que, quando o autor fala em "justificação doméstica" se refere a gramáticas próximas do sentido familiar de relação social traduzido fora da esfera familiar, nomeadamente na esfera pública ou na prática pedagógica; e quando refere a "justificação cívica" se reporta a gramáticas orientadas para as formas de participação dos colectivos no conjunto da sociedade, à orientação para a "vontade geral" e portanto, no caso dos docentes, à forma como estes trabalham nos alunos a sua socialização para, no caso, a vivência civil na orgânica e no Estado corporativos. Segundo José Resende, era na capacidade de compor estes diferentes registos de acção que o 'bom professor' (note-se o sentido identitário da expressão) se definia no período analisado pelo autor.


"(...) Até ao final da segunda grande guerra mundial, o recurso à justificação doméstica aproxima a maior parte dos docentes dos quadros de valores e de normatividade disponíveis no espaço público corporativo. Tal aproximação, porém, não se faz isoladamente. Muitas vezes, os mestres recorrem também à justificação inspirada ou à justificação cívica, ou às duas em simultâneo. Contudo, o recurso a estas justificações, isolada ou combinadamente, não se faz de forma arbitrária. Os sentimentos de protecção e de conversão estão sempre presentes nos sentidos atribuídos às posturas de proximidade física e emocional.

A classificação de 'bons professores' é nessa altura utilizada para definir os docentes que mantêm uma proximidade razoável dos alunos. Esta proximidade revela-se necessária, tanto para a transmissão de modelos de comportamento ajustados às normatividades disponíveis pela doutrina corporativa, como para a aprendizagem dos saberes e da cultura cívica trabalhada de acordo com os propósitos definidos superiormente, mas sempre ajustada às situações escolares experimentadas pelos alunos.

Recorrer à figura do pai ilustra tal razoabilidade nos contactos a manter com os alunos. A tradução, no espaço pedagógico, dos comportamentos paternais facilita a comunicação e regula as relações a manter com a grandeza dos pequenos. O professor 'pater familia' nunca é um pai tirano e severo. Contudo, também não deve ser muito permissivo. Ele é, sobretudo, um pai protector. É justamente o equilíbrio entre estes dois extremos que define o 'bom professor'.

Porém, não é fácil adoptar, na prática pedagógica, este ponto de equilíbrio. A experiência profissional, de um lado, e o apoio dado pelo saber acumulado da psicologia e da psicopedagogia, do outro, facilitam sem dúvida a adopção desta postura de razoabilidade e de bom senso na relação a desenvolver entre o 'bom professor' e os seus discípulos. Mas a experiência prática dita o resto.

(...) A adesão aos valores cívicos pugnados pelo regime opera-se de forma idêntica. A participação nas actividades organizadas pela Mocidade Portuguesa é também um dos meios mais frequentemente utilizados para essa socialização. Por intermédio das suas actuações em domínios tão diversificados como os jogos, o desporto, o campismo, a ginástica, os lavores, mas também através das regras associadas às fardas, às formaturas e aos desfiles paramilitares, os seus dirigentes esforçam-se por 'seduzir' os adolescentes e jovens para as causas e valores defendidos pela doutrina corporativa.

(...) Os professores são instados a trabalhar no sentido de salvaguardarem a memória histórica e cultural do país e, através dela, transmitirem o sentido cívico da defesa da Pátria, os valores das tradições familiares e a difusão da fé cristã.

O recurso à história do país revela-se, na verdade, uma gramática prática indispensável para reavivar a memória, as tradições, a identidade cultural e a defesa da Pátria. Perante uma história quase milenar, seleccionam-se os feitos históricos que permitem trabalhar as interpretações que melhor se encaixam nos reportórios inscritos na doutrina corporativa. Por seu turno, os fracassos e os acontecimentos históricos que fragilizam o tecido social da nação são omitidos oficialmente, e também na escola.

Deste modo, o 'bom professor' é aquele que exibe, na prática, todas estas gramáticas aliadas a todas as propriedades já referidas." in RESENDE, J. (2007). Por uma sociologia política da educação: o xadrez das políticas educativas em Portugal no Estado Novo. Em VIEIRA, M. (Org.). Escola, Jovens e Media. Lisboa. Imprensa de Ciências Sociais. 231-266.
Desta análise, importa reter que:
i) as profissões não são "totalidades" socialmente homogéneas, mas são atravessadas por diferentes lógicas e repertórios de acção, que por vezes entram em tensão e conflito, outras vezes são alvo de um trabalho de composição entre si por parte dos actores sociais;
ii) os diferentes repertórios de acção tendem a ser utilizados pelos actores sociais como formas a) de coordenação das suas acções em grupo; b) de construção social da sua profissão, do ponto de vista da sua valorização e engrandecimento públicos e da sua justificação social;
iii) os diferentes repertórios de acção tendem a favorecer diferentes "figurações identitárias": assim, por exemplo, o professor que utiliza uma justificação "doméstica" pode tender a olhar-se a si próprio e a exigir reconhecimento social como uma figura com características próximas de uma figura paternal.
Sobre este assunto, cfr. também:
RESENDE, J. (2001). Individualidade, Denúncia e Modernidade: o sentido de justiça de um professor no Estado Novo. Fórum Sociológico. nºs 5/6. 101-127.

RESENDE, J. (2000). As qualidades domésticas de educar o povo nos anos 30. Fórum Sociológico. nºs 3/4. 213-237.


Cfr. ainda: