quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Transacções

[Este post enquadra-se no ponto 2.2.1 do programa da U.C.]

Claude Dubar enceta um percurso analítico muito interessante em torno das dinâmicas das identidades sociais e profissionais, incidente sobre os últimos anos do século XX. No seu livro A socialização - construção das identidades sociais e profissionais, Dubar tenta construir uma tipologia de identidades profissionais a partir de um conjunto de estudos empíricos. A leitura dos dados e estudos disponíveis não é feita, evidentemente, sem uma prévia definição teórica de conceitos e problemáticas. O autor considera nesta sua obra que as identidades devem ser estudadas no quadro do processo de socialização, que deve ser encarado como "um processo de construção, desconstrução e reconstrução de identidades ligadas às diversas esferas de a[c]tividade (principalmente profissional) que cada um encontra durante [a] sua vida e das quais deve aprender a tornar-se a[c]tor" (Dubar, op.cit.: XVII). Segundo Dubar, é "ao estudar a[c]ções cole[c]tivas (ou organizadas) como elaborações sociais e ao reconstituir os "mundos" dos a[c]tores (simultaneamente [as] suas visões do mundo e [as] suas categorizações da a[c]ção) que se tem mais chance de reconstituir e compreender os processos de socialização que permitem a coordenação das a[c]ções e a negociação dos "mundos" que sempre são mistos de interesses e de valores" (idem: XVIII).

Para estudar estes processos, Dubar desenvolve um esquema teórico que se desdobra em dois mecanismos fundamentais; aquele que o autor denomina de transacção objectiva e o que designa de transacção subjectiva. O primeiro tipo de transacção reporta-se à dimensão relacional da construção identitária e indica o processo de relacionamento entre as identidades (socialmente) atribuídas/propostas e as identidades assumidas/incorporadas pelo indivíduo. O segundo tipo de transacção reporta-se à dimensão biográfica da construção identitária e identifica o processo de relação entre as identidades herdadas pelo indivíduo (dimensão referente às identificações anteriores) e as identidades por ele visadas (aquelas que deseja construir no futuro). De acordo com Dubar, a identidade reivindicada pelo indivíduo em função das suas transacções subjectivas pode estar em continuidade ou em ruptura com a sua identidade herdada; por outro lado, pode ou não obter o reconhecimento (transacção objectiva) do(s) outro(s). Inversamente, os actos de atribuição identitária realizados pelo(s) outro(s) podem ser ou não incorporados pelo indivíduo, em função do seu processo de transacção subjectiva.

Dubar tenta, com este esquema, interligar duas dimensões que considera fundamentais na construção das identidades sociais e profissionais: uma primeira, que remete para um eixo "sincrónico", ligado a um contexto de acção e a uma definição da situação, num determinado espaço, culturalmente marcado; uma segunda, que envia para um eixo "diacrónico", ligado a uma trajectória subjectiva e a uma interpretação da história pessoal, socialmente construída, do indivíduo.

É utilizando o esquema teórico de que apresentei aqui alguns aspectos fundamentais - de forma simplificada - que Dubar "lê" as questões identitárias no trabalho e constrói a já referida tipologia de identidades. Um dos tipos identitários identificados por Dubar é o da identidade autónoma e incerta. Sobre este tipo identitário, deixo abaixo as palavras do próprio autor, ao descrevê-lo baseando-se em material empírico. A partir desta descrição, pode-se verificar a fecundidade analítica do esquema teórico proposto.

Desloquemo-nos pois, agora, para mais próximo (quando não para o "interior") das "zonas de coesão" de que fala Robert Castel.


«"Temos problemas com alguns d[os] nossos jovens diplomados. Estão decepcionados com os empregos que ocupam, e a empresa não lhes pode oferecer as carreiras que desejam. Seguem muito estágios de formação, frequ[e]ntemente sem que saibamos, e alguns acabam pedindo demissão para procurar emprego [n]outro lugar. Na verdade, estão aqui à espera..."


Es[t]a constatação de um dire[c]tor de recursos humanos de uma grande empresa [telefónica] sanciona o fracasso relativo (...) de uma política de recrutamento de jovens "universitários" sobrediplomados em relação aos empregos nos quais se encontram e consideravelmente deslocados em relação a eles. Es[t]es jovens constituem um problema para as [direcções] das empresas por uma dupla razão: de um lado nenhuma carreira existente parece adaptar-se a eles, e [o] seu futuro na empresa permanece problemático; de outro lado, eles não compartilham, no trabalho, as mesmas atitudes dos assalariados em promoção interna - mais individualistas, menos mobilizados para a empresa, com frequência são mais críticos e parecem mais instáveis. Está claro que não é essencialmente na empresa que querem construir ou consolidar uma identidade flutuante.


(...) A grande maioria [destes] assalariados é de origem não-operária; entretanto a maior parte deles ocupa empregos de execução ademais muito diversificados: operários, funcionários, técnicos. Quase todos os mais jovens são bacharéis ou portadores de um [diploma de ensino superior, mesmo que inferior à licenciatura]. Os mais antigos obtiveram um diploma - ou o que consideram equivalente - por formações contínuas voluntárias ou então estão em processo de obtenção (...). Para isso, empenham-se para mobilizar uma parte dos recursos da empresa: inscrevem-se no plano de formação para os estágios que [lhes] interessam, às vezes pedem licenças individuais de formação, negoc[e]iam dias de ausência para seguir cursos. As únicas formações que lhes interessam são externas à empresa e que levam a diplomas reconhecidos: são frequentemente muito críticos com os "estágios internos", cuja utilidade de cujo cará[c]ter integrativo contestam. Para eles, a formação é um direito individual, um investimento pessoal que prolonga, renova ou re[c]tifica a formação escolar.


As formações que eles seguem ou seguiram são estruturantes d[a] sua identidade: definem-se mais [pelo] seu diploma que [pelo] seu trabalho. têm consciência de que valem mais que o emprego que ocupam e de que são diferentes daquilo que os define oficialmente na empresa. Como no caso de alguns quadros preocupados em [distinguir-se dos] seus pares, "tudo é feito, [no] seu discurso, para negar que o vínculo administrativo, o pertencimento formal a uma categoria possa constituir um traço pertinente d[a] sua identidade social" (Boltanski, Luc, Les cadres - la formation d'un groupe social). De fa[c]to, falam muito pouco d[a] sua situação profissional mas bastante d[as] suas formações e d[os] seus proje[c]tos, até mesmo d[a] sua a[c]tividade exterior, como o montador-ele[c]tricista que, tendo obtido um diploma de ele[c]tr[ó]nica por correspondência (...) conserta televisões todos os sábados e nas suas férias.


Portanto [a] sua identidade está desdobrada da seguinte forma: a falsa identidade, a identidade oficial, é a que os outros associam à sua situação profissional a[c]tual, ao cargo que ocupam, ao grupo ao qual não se sentem "realmente" pertencer. [A] sua verdadeira identidade - para si - é a que perseguem por meio de suas formações ou a[c]tividades culturais e cuja busca só não é mais obstinada porque já a encontraram encoberta [na] sua origem social ou [no] seu entorno familiar. Com frequ[ê]ncia [o] seu grupo de referência também é [o] seu grupo de origem: por isso, eles [podem utilizar essa] identidade virtual para melhor se distanciar das identidades oficiais que lhes podem ser atribuídas - "a autenticidade que os define com exclusividade é o que faz com que escapem à categoria por cima" (Boltanski, idem).


(...) As relações que es[t]es assalariados assim desdobrados mantêm com [os] seus superiores são ambivalentes: reticentes, até mesmo rebeldes, a toda [a] forma de comportamento autoritário, declaram-se, com frequ[ê]ncia, participativos em toda [a] iniciativa que visa a atenuar o cará[c]ter rotineiro do trabalho ou os entraves burocráticos da organização. Aprovam o espírito das experiências em curso e em geral participam dos grupos organizados nessa ocasião. Às vezes até se apresentam como parceiros a[c]tivos d[os] seus responsáveis [nas] suas funções de animador: valorizam o diálogo, as discussões, as iniciativas destinadas a aumentar a autonomia dos executores. mas também são muito críticos em relação à persistência dos modeos de gestão herdados do sistema anterior e que perduram nas experiências em curso. Tornam-se até mesmo abertamente "vindicativos" quando os contra-mestres lhes parecem incapazes de colocar em prática os proje[c]tos participativos ou racionalizadores da empresa. Es[t]a relação pode assumir uma forma conflituosa quando a "competência" d[os] seus chefes é explicitamente questionada. Devem, então, mobilizar redes externas ao serviço, até mesmo recorrer à arbitragem de responsáveis superiores, para evitar entrar em enfrentamentos pessoais ameaçadores. Es[t]es incidentes alimentam o processo de rotulagem de que às vezes são obje[c]to, reforçando, dessa forma, [a] sua dilaceração identitária. É assim que alguns forjam para si, sob pressão de outrem, essa "subcultura desviante" que lhes permite compartilhar com uma rede de semelhantes a mesma postura crítica a os mesmos proje[c]tos ou fantasias de [saír da] empresa.