quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Partilha IV

Imagem extraída de: http://balbinojornalista.files.wordpress.com/2009/07/edvard-munch-o-grito.jpg

Hoje, ao final da manhã, uma mestranda remeteu-me, via e-mail, a ligação abaixo, que resolvi partilhar neste blogue. Agradeço muito este acto de partilha e espero que outros possam aqui encontrar, igualmente, motivos de reflexão e análise.


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A identidade - entre a narrativa biográfica e a imagem fugaz



Imagem extraída de: http://www.yapi.com.tr/V_Images/2007/sektorel/52059-1.jpg


Jean-Claude Kauffmann alarga e aprofunda o conceito de identidade trabalhado por Claude Dubar. Assim, olhando para a transacção subjectiva realizada pelo indivíduo, Kauffmann diz-nos que ela se configura em termos de continuidade e ruptura, é certo, mas que importa também acrescentar a esta primeira uma dinâmica adicional.


Segundo este autor, a identidade não é a mesmidade absoluta (como a identidade entre dois números iguais), mas desde logo um processo de construção narrativa de si próprio (ipseidade). Assim, a identidade não é uma substância, mas um elemento de coerência num conjunto diversificado de imagens resultantes de um percurso de vida. A identidade como construção narrativa, que representa a busca individual de um sentido para a vida e também uma tentativa constante de constituição de um ego consistente, faz-se, porém, a partir de "materiais" fragmentários, por vezes de pequenas e fugazes identificações, de imagens de si momentâneas e que a todo o momento confrontam o indivíduo com a sua própria diversidade.


Para Kauffmann, por conseguinte, importa integrar na análise das identidades estas outras identificações - chamemos-lhes imediatas - e perceber como os esforços de integração das mesmas numa narrativa de vida são encetados pelo indivíduo, em moldes que possam significar, nos termos de Dubar, uma continuidade ou uma ruptura.


Kauffmann distingue, pois, a identidade biográfica, cuja principal "função" é a constituição de um sentido geral, uma narrativa de si-próprio, da identidade imediata, cuja "função" é pragmática: num contexto de acção, é uma imagem que o ego se faz de si próprio em ordem a seleccionar uma via de acção. Um exemplo desta segunda é o da confrontação, subjectiva e momentânea, de imagens de si próprio contrastadas, que põem em cena representações de si mesmo oriundas de diferentes sistemas normativos, como quando o indivíduo, perante uma tarefa difícil, se experimenta a si mesmo, de um lado, como trabalhador aplicado, sério, esforçado e, de outro lado, como alguém orientado pelo prazer, que se pergunta porque as pessoas se sacrificam a tarefas tão insignificantes como aquela, porque não vivem antes a vida... e decide em seguida, a partir de uma das imagens de si próprio.


A distinção entre estes dois "registos" identitários é muito importante de um ponto de vista metodológico: ela aconselha-nos a diferenciar a identidade narrativa que nos é contada, digamos, por um entrevistado, das formas identitárias mais fugazes e operatórias que ele pode mobilizar em contextos específicos de acção.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Partilha III

Imagem retirada de http://www.ssrc.org/calhoun/about/

Para aqueles que compreendem bem a língua inglesa, uma excelente entrevista de um grande sociólogo americano, Craig Calhoun (em áudio), acerca da crise económica que estamos a viver e as respectivas causas. Calhoun, além da análise que desenvolve, defende a necessidade de se recuperar a importância de noções como "bem comum" (público) e suas articulações com as formas legítimas de governo. Muito embora seja uma entrevista com mais de um ano, permanece actual, nomeadamente para quem deseje compreender um pouco melhor a nossa contemporaneidade.



http://www.ssrc.org/calhoun/2008/09/26/episode-6-finding-the-public-interest-in-response-to-the-financial-crisis/

Partilha II

Deixo abaixo a ligação para um texto com interesse.

http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628da0d4e27b_1.pdf

domingo, 10 de janeiro de 2010

Exemplos: II

O processo de desafiliação, de que fala Robert Castel, é um processo de perda progressiva do(s) laço(s) social(is), associado à saída de uma "zona" de coesão social definida pela integração laboral e ao desenvolvimento de sociabilidades mais correlacionadas com o trabalho do que podem parecer a uma análise mais apressada.

Segundo Castel, trata-se de um processo de invalidação social. Retraduzindo esta questão na terminologia de Claude Dubar, diríamos que a transacção objectiva se encontra, em primeiro lugar, num estado tensional com a transacção subjectiva, na medida em que o indivíduo, na sua subjectividade, inicia um processo pelo qual obtém cada vez menos reconhecimento no olhar do outro e, correlativamente a atribuição identitária feita pelo(s) outro(s) segue o caminho da desvalorização. Finalmente, a transacção objectiva chega a um estado que talvez se possa classificar como indefinido (passe o paradoxo), ou mesmo (será possível?) inexistente, na medida em que o seu pressuposto é a ausência: o sujeito torna-se invisível ao olhar do outro. Falando-se de transacção, de troca, ela parece escapar-se insidiosamente desta situação. Este registo é crítico, ainda, porque a voz do indivíduo tende a anular-se. Por outras palavras, a sua possibilidade de reivindicação identitária tende para zero.

O trabalho de reabilitação de pessoas nesta condição, parece-me, apenas tem a ganhar por ser um trabalho de proximidade. Um trabalho de familiarização interpessoal, numa lógica do cuidado - ou seja, uma intervenção em que, como bem diz Antónia Perdigão, o cuidado é a base da intervenção profissional e não a intervenção profissional a base do cuidado. Como resulta claro, esta intervenção conduz o técnico a envolver-se na acção num regime de familiaridade, talvez o mais propício a redescobrir, por sob os sedimentos ásperos das marcas de um processo desqualificante e, num certo sentido, aniquilador, a história de uma vida que, como outras vidas, busca sentido identitário e, talvez ainda, o reconhecimento no olhar do outro. Isto é, também - a reconstituição do(s) laço(s) social(is).

Exemplos: I

Um outro cruzamento analítico que penso poder ser interessante, no âmbito de uma discussão sobre as questões do desenvolvimento local: conjugar as questões dos regimes de envolvimento na acção com a perspectiva das identidades como trabalhada por Claude Dubar. Vejamos uma situação hipotética, a partir da qual podemos pensar naquilo a que usualmente se apelida de "obstáculos culturais" à acção em parceria orientada para o desenvolvimento.

Numa organização burocrática - por exemplo, uma delegação local de um instituto público -, um trabalhador que era útil mobilizar para uma parceria está rotinizado numa acção em plano. Conhece os trâmites da burocracia estatal, domina tecnicamente as questões atinentes à atribuição de prestações aos utentes, cumpre um horário regular, participa na execução de planos e cumprimento de objectivos definidos superiormente. Vive satisfeito com o seu trabalho; busca o reconhecimento dos outros - colegas de vários níveis hierárquicos e departamentos, chefias - pela sua competência técnica. Filho de uma família de classe média, os pais eram funcionários públicos de grau intermédio. O pai chegou a exercer funções de chefia de serviço por mais de uma década. Desde cedo centrou os seus objectivos profissionais na construção de uma carreira bem enquadrada e definida pelo mérito técnico. Reage negativamente sempre que critérios de ordem não técnica são utilizados para, por exemplo, recrutar ou promover pessoal. Considera que as relações informais nas organizações devem ser claramente separadas dos aspectos que considera estritamente profissionais. Assim, a sua transacção subjectiva assenta numa continuidade entre identidade herdada e visada; representa-se a si mesmo como um profissional com competência técnica, em crescimento numa carreira que deve estar baseada no mérito. Na organização em que trabalha, em geral este reconhecimento é assegurado: o conhecimento formal é nela valorizado, as carreiras estão bem definidas por níveis (designadamente de qualificações) e a informalidade não costuma, salvo excepções, interferir com a análise de desempenho baseada nos aspectos mais formais e racionalizados da acção. A sua transacção objectiva é, por conseguinte, vivida sem grande tensão, pois a identidade atribuída é consonante com a sua subjectividade e, por outro lado, obtém reconhecimento consentâneo com o seu investimento no conhecimento e desempenho formais. Compreende-se assim a sua redução prática do envolvimento profissional à acção num regime de plano: do encontro entre a sua subjectividade e a objectividade da organização em que trabalha, resulta uma certa harmonização dinâmica.

Chamado a participar num projecto de desenvolvimento local, baseado no trabalho em parceria, confronta-se com uma realidade muito diferente. Custa-lhe perceber uma certa ausência de hierarquia e, mais do que isso, a existência de porta-vozes e lideranças amplamente informais e nem sempre baseadas exclusivamente na competência técnica. Pormenores rotineiros a que está habituado e que valoriza, como escrever tudo quanto é relevante do ponto de vista da organização onde trabalha (em ofícios, informações, notas de serviço, pareceres...) são ostensivamente descurados. Entende que se devam ouvir os destinatários sobre as intervenções a assumir, mas desconfia sistematicamente das suas razões, sobretudo quando estes acusam a organização em que trabalha de um certo excesso de formalismo burocrático. Nestes momentos, olha frequentemente para os lados e não compreende por que não reagem os seus "colegas" de parceria. Por outro lado, já partiu para o processo com forte desconfiança face ao mesmo: como poderá a parceria revelar-se eficaz se as decisões são demasiado "democratizadas" e informais, sempre ocupadas em ouvir várias pessoas em lugar de agir, sempre adaptadas a cada caso concreto? Parece-lhe que isto, no limite, põe em causa uma certa justiça definida pelo facto de a intervenção pública dever ser aplicada uniformemente, sem adaptações especiais, que lhe soam um pouco a "favorecimento". Ademais, esta ideia de adaptabilidade permanente incomoda-o: está habituado a planos bem definidos, até ao ínfimo detalhe e esta forma fluida de trabalho sobre o futuro cria-lhe ansiedade, pois este futuro parece-lhe incerto na ausência de planos pormenorizados e realizados pelos mais "competentes".

A dada altura, não obstante estas suas predisposições negativas, é convocado para animar um grupo de trabalho no âmbito da parceria, dedicado à área de intervenção do organismo em que trabalha. Sente-se desconfortável e sem saber o que fazer; por outro lado, sente um certo mal-estar por não partilhar dos "valores" dos parceiros. Mas acaba por aceitar, pois a direcção regional do seu organismo, previamente contactada, transmite-lhe essa incumbência.

Gera-se um conflito identitário: num momento, o espaço objectivo de reconhecimento que permitia uma harmonização dinâmica da sua vida profissional deixa de ser único e vê-se confrontado com uma realidade em que as pessoas se envolvem na acção de um modo mais informal, num trabalho em rede, horizontal, adaptável. "Eles" funcionam num regime dominantemente familiar; ele está rotinizado numa acção em plano e não conhece outra, no plano profissional. Isto causa sofrimento a este profissional e pode ser um entrave ao bom funcionamento do grupo de trabalho que é suposto animar.

Acção em contexto de promoção do desenvolvimento local (versão corrigida)

Escrevo este post para dar um exemplo da pertinência analítica de alguns dos conceitos que explicitei nesta página, quando se trata de pensar numa área fundamental do curso de mestrado, o desenvolvimento local.

É relativamente consensual a opinião, entre as pessoas das ciências sociais mas também entre múltiplos agentes de desenvolvimento local, que o desenvolvimento deve ser integrado, isto é, pensado e agido em função da melhoria de condições de diversos âmbitos - ambiental, económico, social, cultural. Não menos consensual é a ideia de que uma estratégia de desenvolvimento local envolve tendencialmente a construção de formas de organização da acção dos agentes implicados no desenvolvimento diferentes das formas de organização mais rotineiras das organizações locais, sobretudo estatais. Esta diferença nota-se particularmente quando se dá o confronto entre uma acção centrada numa racionalidade burocrática, característica da maioria das organizações públicas com intervenção, mais ou menos directa, no desenvolvimento local e uma acção centrada num trabalho de proximidade, mais flexível e adaptado aos contextos em que se pretende intervir e, nomeadamente, às necessidades particulares dos contextos em que se pretende intervir.

Esta questão pode ser pensada a partir dos conteúdos da U.C. relativos à integração de diferentes regimes dinâmicos nas organizações.

Na verdade, a resposta, ao nível da organização do trabalho para o desenvolvimento, que tem vindo a ser dada por muitas entidades a nível local e a qual tem, por vezes, logrado algum sucesso interventivo, é a intervenção numa lógica de parceria. O que é interessante na parceria, do ponto de vista da sua capacidade para organizar respostas em contextos complexos de acção (como lidar com a toxicodependência, promover a saúde das populações, educar adultos ou construir quadros de integração juvenil) é a sua flexibilidade organizativa, que permite uma intervenção para o desenvolvimento de geometria variável, organizável e reorganizável com baixos custos e esforço, em função das mudanças na realidade; e a sua capacidade integradora: por colocar a trabalhar em conjunto pessoas e organizações com vocações e competências diversificadas, facilmente propicia respostas integradas a fenómenos complexos - ao contrário da resposta burocrática, tendencialmente departamentalizada e, como tal, centrada num único domínio de intervenção (por exemplo, a acção social). É frequente, por conseguinte, encontrarmos parcerias capazes de se reorganizarem em função das necessidades de intervenção e capazes de responderem a problemas que, por exemplo, envolvam uma resposta integrada ao nível da saúde, da formação de adultos e da acção social. Finalmente, a parceria pode com facilidade integrar o ponto de vista dos respectivos destinatários, o que contribui para destecnicizar e democratizar a própria intervenção e facilitar a apropriação dos respectivos resultados pelas populações destinatárias.

Ora, do ponto de vista do confronto entre diferentes regimes de acção, quando pretendemos fazer organizações burocratizadas envolverem-se num trabalho em parceria, deparamo-nos frequentemente com tensões entre os mesmos. Isto, porque temos, de um lado, um regime de acção em plano, estruturado em organizações burocratizadas, orientadas para a eficiência, hierarquizadas, com circuitos formalizados de circulação de informação e de tomada de decisão, orientadas para a previsibilidade e o planeamento, rotinizadas e cujos profissionais se distinguem - idealmente - pela competência técnica (é evidente que esta é uma caracterização abstracta e que, em cada caso concreto, as organizações são mais complexas). De outro lado, uma acção, em parceria, com componentes fortes (não exclusivas) de um regime familiar: organização do trabalho com uma forte personalização da acção, não hierarquizada na base da competência técnica, informal, sem circuitos longos e definidos de tomada de decisão, mas redes e sociabilidades informais, centrada no fazer mais do que no planeamento em detalhe, vocacionada para um trabalho de proximidade.

O que também é relevante notar é que a acção em parceria parece constituir-se não só num regime familiar, mas através de um trabalho de composição entre diferentes regimes: se a parceria de desenvolvimento local visa destecnicizar, flexibilizar e tornar integradora a acção organizada para a constituir numa modalidade de proximidade, ela não deixa de necessitar de ser planeada (idealmente, de forma estratégica - planeamento estratégico), de rotinizar minimamente práticas e estabelecer um mínimo de formalização nos circuitos de circulação de informação e tomada de decisão, bem como um mínimo de eficiência e de tecnicidade. Tendo em conta que uma sociologia dos regimes de envolvimento na acção nos diz que a capacidade de envolvimento com sucesso em diferentes regimes de acção está associada à posse de diferentes competências, podemos então pensar que o perfil do agente de desenvolvimento local que se envolve num trabalho de dinamização de parcerias deverá ser o de alguém capaz de se "movimentar" nestes diferentes regimes e de minimizar as suas tensões. Nomeadamente, as tensões entre os aspectos mais formais da acção em plano e os aspectos mais informais da acção num regime de proximidade que a parceria necessariamente envolve. Alguém capaz de alternar entre proximidade familiar e generalização técnica; entre o domínio dos saberes informais, práticos e tácitos e o domínio dos saberes formalizados, teóricos e explícitos; entre a negociação em condições informais e a negociação em circuitos formais e especializados - e, também, deverá ser alguém capaz de fazer surgir, na prática, as virtualidades da composição activa de intervenções que integrem estas e outras dimensões dos diferentes regimes de acção. Assim, por exemplo, alguém com um perfil exclusivamente técnico pode nem sempre possuir o perfil indicado, da mesma maneira que alguém com um perfil mais exclusivamente "voluntarista" e habituado ao trabalho de assistência e proximidade às populações também não. Importante talvez seja, realmente, um perfil que estabeleça um bom compromisso entre estas características e as competências que lhes subjazem. Por exemplo, um(a) assistente social que é capaz de adaptar, localmente, um normativo legal, complementando uma prestação definida por Lei com recursos locais, mobilizados por uma rede de sociabilidade, os quais garantem um maior conforto da pessoa destinatária, que foi previamente ouvida nesse sentido, num registo de proximidade. Como um(a) animador(a) sociocultural que mobiliza uma rede de parceiros locais para intervirem ao nível da formação informal dos estudantes de uma escola (por exemplo para desenvolver competências sociais), nos espaços de recreio, ao mesmo tempo que consegue discutir e negociar com o corpo docente aspectos técnicos e pedagógicos da sua intervenção e compreender e discutir com profundidade técnica o seu papel no Projecto de Escola.


Note-se, finalmente, que, em concreto, esta leitura terá sempre de ser especificada: quer a "competência técnica", quer as "competências de proximidade", terão diferenças consoante as áreas de intervenção. Quer a um nível, quer a outro, não é a mesma coisa intervir na área da saúde ou do emprego. Não obstante, parece importante não perder de vista o aspecto mais transversal de reunião de competências de diferentes âmbitos (regimes), que permitem um verdadeiro trabalho de projecto em parceria.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Integração de diferentes regimes dinâmicos nas organizações


















Para abordar o tema do Programa da UC que titula este post, dedicarei algumas palavras à sociologia pragmática, nomeadamente num dos seus capítulos-chave, a sociologia dos regimes de envolvimento na acção (Thévenot, 2006).

De acordo com os autores que vêm trabalhando este quadro teórico (Thévenot, op.cit., Boltanski e Thévenot, 1991), os indivíduos, quando procuram coordenar a sua acção com a de outros, fazem-no através de diferentes “modos de entrada” nessa mesma acção. Para Laurent Thévenot, estes “modos” podem ser adequadamente entendidos como diferentes regimes de envolvimento na acção. Diz-nos o autor (Cfr. op.cit., traduções do francês da minha responsabilidade): "De forma diferenciada dos modelos de acção que colocam o acento sobre o actor, sobre a sua colectividade ou individualidade, a sua consciência ou inconsciência, a sua reflexão ou irreflexão, a nossa caracterização dos regimes de envolvimento põe em evidência a moldagem conjunta da pessoa e do seu ambiente, que requer o seu envolvimento".

Os principais eixos diferenciadores dos diversos regimes de envolvimento na acção, no seio desta perspectiva, são, diz-nos Thévenot, a avaliação ou julgamento que os indivíduos fazem, em situação, sobre a sua própria conduta - procurando uma acção conveniente à situação específica em que se encontram - e o apoio que essa avaliação ou julgamento encontra na própria situação (Cfr. Idem): "Distinguimos as formas pelas quais a realidade é experimentada e a forma pela qual a conduta é avaliada em cada uma delas. A noção de conveniência (…) é empregue para distinguir as avaliações do envolvimento segundo regimes, porque ela oferece-se a graduações. Ela conduz a caracterizar a dinâmica de cada um dos regimes a partir da forma de avaliação que a governa e do género de apoio que ela encontra no ambiente material do agente".

Sobre estes parâmetros analíticos, Thévenot identifica três diferentes regimes de envolvimento na acção, os quais variam entre um modo de envolvimento mais íntimo e pessoal e um espaço de constrangimentos convencionais típicos da esfera pública, mais geral e racional. Assim, para o autor francês, temos três grandes regimes de envolvimento, distribuídos sobre um eixo que vai do singular ao geral: o regime familiar, o regime de plano e o regime público, diferenciados em função do julgamento feito pelo indivíduo em situação sobre a forma de coordenação conveniente à mesma num eixo de gradações de generalidade das relações entre os seres em presença.

O autor define assim o primeiro destes regimes (Thévenot, 2006): "No regime de envolvimento familiar, o bem mantido está localizado e é personalizado. (…) O bem-estar experimentado na comodidade de um entorno depende estreitamente da pessoa que se acomodou ao mesmo e do desenvolvimento da familiarização efectuado perto de um meio moldado pelo uso".

Temos, assim, um mundo familiar, no qual os agentes se envolvem na acção de uma forma muito "próxima". Este envolvimento não passa por executar esforços de colocação dos seres (humanos ou objectos) em presença sob qualquer princípio de equivalência quando agem. Por outro lado, o registo de proximidade pode ser exemplificado com as minudências que utilizamos para trabalhar com um objecto ou pessoas que conhecemos profundamente, como quando eu bato no tablier do meu carro, tendo uma expectativa razoável de que a luz que se apagara do velocímetro acenda após este gesto, que já vi ser eficaz anteriormente. Este mesmo gesto seria algo que não teria facilidade de explicar a outra pessoa, até por constrangimentos de ordem moral ("não se bate assim no carro, até porque se estraga!"). Aqui, mesmo a linguagem verbal não é analítica (por exemplo entre duas pessoas) e pode parecer até estranha, dado o seu carácter intrinsecamente generalizador (a palavra "copo" designa todos os copos possíveis e há sempre um desvio face a este copo concreto, que tenho na mão e que é o referente que parece escapar à linguagem, num registo familiar).

O regime de acção em plano, por seu turno, envolve uma subida em generalidade das relações entre os seres em presença, na medida em que se desloca para lá do círculo das solidariedades construídas pelo uso íntimo (Cfr. idem): O regime de acção em plano corresponde a um nível de envolvimento tão comum que corre o risco de se tornar invisível na especificidade da sua apreensão dos eventos enquanto condutas humanas. (…) É a promessa que conhece uma modalidade mais formalizada nas organizações: o projecto. O envolvimento em plano alarga-se ainda tendo ao ter-se em conta o outro na sua própria capacidade de agente individual envolvido no seu plano. O envolvimento é, então, estratégico, levando outro(s) em conta, assimetricamente.

O regime de plano aproxima-se, frequentemente, de uma acção funcional face a um projecto mais ou menos explícito. Neste caso, os objectos e os humanos tendem a ser trabalhados na acção em função das expectativas incorporadas na situação e que remetem para "planos" mais ou menos partilhados pelos intervenientes (que podem ser "outros generalizados", na perspectiva de George H. Mead, como colectivos mais ou menos generalizados - classe, partido, por exemplo -, embora isto seja mais típico do regime público; o "ser" social mais próprio, aqui, é a organização).

Finalmente, o regime de maior generalidade na forma como os indivíduos julgam e coordenam as suas acções em situações específicas é o regime público. "Aqui, o envolvimento é apreciado segundo uma ordem de grandeza legítima que se apoia numa especificação do bem comum (…). A realidade de nada faz prova senão quando é publicamente qualificada segundo esta grandeza em termos de preço, de eficácia, de renome, etc. A pessoa encontra garantias para o seu envolvimento na disposição das coisas qualificadas, num dispositivo do seu agenciamento coerente. O agente é uma pessoa qualificada segundo a grandeza, não apenas um simples indivíduo. O seu poder legítimo repousa nesta qualificação que marca a sua participação no bem comum. Uma coordenação de um conjunto complexo de acções implicando ajustamentos recíprocos à distância, com actores anónimos, faz advir uma procura de garantia pública, correspondente a este regime" (Cfr. Thévenot. op.cit.).

Livros:

BOLTANSKI, Luc, THÉVENOT, Laurent, De la justification. Les économies de la grandeur, Paris, Éditions Gallimard, 1991

THÉVENOT, Laurent, L’action au pluriel – sociologie des régimes d’engagement, Paris, Éditions La Découverte, 2006

O que é interessante aqui é darmo-nos conta da forma como estes diferentes regimes de acção são mobilizados pelas pessoas nas organizações de trabalho, como eles geram tendenciais conflitos e tensões entre si e como as pessoas se envolvem num trabalho de crítica, negociação e construção de acordos que permitam compor as determinação dos diferentes regimes entre si. Centremo-nos em apenas dois destes regimes, o familiar e o de plano.

Por exemplo, num regime familiar as pessoas tendem a envolver-se no trabalho num registo personalizado e, em grande medida, informal. O tipo de saber que mobilizam para o seu trabalho é um saber também ele informal, localizado, amplamente tácito e sem planos e objectivos formalizados. Num regime de plano, por sua vez, o envolvimento no trabalho é mais impessoal, formal; o tipo de saber mobilizado é tendencialmente o saber formal, explícito; o trabalho é altamente planeado e tendencialmente traduzido em objectivos formais.
Estes diferentes registos de acção podem ser tensionais entre si - por exemplo, pode haver trabalhadores, habituados a um regime familiar, que reagem criticamente perante os saberes "teóricos" e "técnicos" daqueles que agem num registo mais formal e, inversamente, estes últimos podem criticar no trabalho dos primeiros uma falta de sistematicidade no seu trabalho, uma tendência para o trabalho casuístico, mais dificilmente generalizável a outros trabalhadores/organizações, "desqualificado", etc.
Por outro lado, estes regimes também podem ser, como dissemos, compostos entre si - por exemplo, quando um profissional cujo poder organizacional repousa amplamente nos saberes formais exclusivos da sua profissão, um médico, tenta adaptar, personalizar, ajustar a sua intervenção técnica a cada caso concreto, ouvindo o doente em profundidade e tentando explicitar as suas soluções técnicas numa linguagem e num registo de proximidade com o doente.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Transacções

[Este post enquadra-se no ponto 2.2.1 do programa da U.C.]

Claude Dubar enceta um percurso analítico muito interessante em torno das dinâmicas das identidades sociais e profissionais, incidente sobre os últimos anos do século XX. No seu livro A socialização - construção das identidades sociais e profissionais, Dubar tenta construir uma tipologia de identidades profissionais a partir de um conjunto de estudos empíricos. A leitura dos dados e estudos disponíveis não é feita, evidentemente, sem uma prévia definição teórica de conceitos e problemáticas. O autor considera nesta sua obra que as identidades devem ser estudadas no quadro do processo de socialização, que deve ser encarado como "um processo de construção, desconstrução e reconstrução de identidades ligadas às diversas esferas de a[c]tividade (principalmente profissional) que cada um encontra durante [a] sua vida e das quais deve aprender a tornar-se a[c]tor" (Dubar, op.cit.: XVII). Segundo Dubar, é "ao estudar a[c]ções cole[c]tivas (ou organizadas) como elaborações sociais e ao reconstituir os "mundos" dos a[c]tores (simultaneamente [as] suas visões do mundo e [as] suas categorizações da a[c]ção) que se tem mais chance de reconstituir e compreender os processos de socialização que permitem a coordenação das a[c]ções e a negociação dos "mundos" que sempre são mistos de interesses e de valores" (idem: XVIII).

Para estudar estes processos, Dubar desenvolve um esquema teórico que se desdobra em dois mecanismos fundamentais; aquele que o autor denomina de transacção objectiva e o que designa de transacção subjectiva. O primeiro tipo de transacção reporta-se à dimensão relacional da construção identitária e indica o processo de relacionamento entre as identidades (socialmente) atribuídas/propostas e as identidades assumidas/incorporadas pelo indivíduo. O segundo tipo de transacção reporta-se à dimensão biográfica da construção identitária e identifica o processo de relação entre as identidades herdadas pelo indivíduo (dimensão referente às identificações anteriores) e as identidades por ele visadas (aquelas que deseja construir no futuro). De acordo com Dubar, a identidade reivindicada pelo indivíduo em função das suas transacções subjectivas pode estar em continuidade ou em ruptura com a sua identidade herdada; por outro lado, pode ou não obter o reconhecimento (transacção objectiva) do(s) outro(s). Inversamente, os actos de atribuição identitária realizados pelo(s) outro(s) podem ser ou não incorporados pelo indivíduo, em função do seu processo de transacção subjectiva.

Dubar tenta, com este esquema, interligar duas dimensões que considera fundamentais na construção das identidades sociais e profissionais: uma primeira, que remete para um eixo "sincrónico", ligado a um contexto de acção e a uma definição da situação, num determinado espaço, culturalmente marcado; uma segunda, que envia para um eixo "diacrónico", ligado a uma trajectória subjectiva e a uma interpretação da história pessoal, socialmente construída, do indivíduo.

É utilizando o esquema teórico de que apresentei aqui alguns aspectos fundamentais - de forma simplificada - que Dubar "lê" as questões identitárias no trabalho e constrói a já referida tipologia de identidades. Um dos tipos identitários identificados por Dubar é o da identidade autónoma e incerta. Sobre este tipo identitário, deixo abaixo as palavras do próprio autor, ao descrevê-lo baseando-se em material empírico. A partir desta descrição, pode-se verificar a fecundidade analítica do esquema teórico proposto.

Desloquemo-nos pois, agora, para mais próximo (quando não para o "interior") das "zonas de coesão" de que fala Robert Castel.


«"Temos problemas com alguns d[os] nossos jovens diplomados. Estão decepcionados com os empregos que ocupam, e a empresa não lhes pode oferecer as carreiras que desejam. Seguem muito estágios de formação, frequ[e]ntemente sem que saibamos, e alguns acabam pedindo demissão para procurar emprego [n]outro lugar. Na verdade, estão aqui à espera..."


Es[t]a constatação de um dire[c]tor de recursos humanos de uma grande empresa [telefónica] sanciona o fracasso relativo (...) de uma política de recrutamento de jovens "universitários" sobrediplomados em relação aos empregos nos quais se encontram e consideravelmente deslocados em relação a eles. Es[t]es jovens constituem um problema para as [direcções] das empresas por uma dupla razão: de um lado nenhuma carreira existente parece adaptar-se a eles, e [o] seu futuro na empresa permanece problemático; de outro lado, eles não compartilham, no trabalho, as mesmas atitudes dos assalariados em promoção interna - mais individualistas, menos mobilizados para a empresa, com frequência são mais críticos e parecem mais instáveis. Está claro que não é essencialmente na empresa que querem construir ou consolidar uma identidade flutuante.


(...) A grande maioria [destes] assalariados é de origem não-operária; entretanto a maior parte deles ocupa empregos de execução ademais muito diversificados: operários, funcionários, técnicos. Quase todos os mais jovens são bacharéis ou portadores de um [diploma de ensino superior, mesmo que inferior à licenciatura]. Os mais antigos obtiveram um diploma - ou o que consideram equivalente - por formações contínuas voluntárias ou então estão em processo de obtenção (...). Para isso, empenham-se para mobilizar uma parte dos recursos da empresa: inscrevem-se no plano de formação para os estágios que [lhes] interessam, às vezes pedem licenças individuais de formação, negoc[e]iam dias de ausência para seguir cursos. As únicas formações que lhes interessam são externas à empresa e que levam a diplomas reconhecidos: são frequentemente muito críticos com os "estágios internos", cuja utilidade de cujo cará[c]ter integrativo contestam. Para eles, a formação é um direito individual, um investimento pessoal que prolonga, renova ou re[c]tifica a formação escolar.


As formações que eles seguem ou seguiram são estruturantes d[a] sua identidade: definem-se mais [pelo] seu diploma que [pelo] seu trabalho. têm consciência de que valem mais que o emprego que ocupam e de que são diferentes daquilo que os define oficialmente na empresa. Como no caso de alguns quadros preocupados em [distinguir-se dos] seus pares, "tudo é feito, [no] seu discurso, para negar que o vínculo administrativo, o pertencimento formal a uma categoria possa constituir um traço pertinente d[a] sua identidade social" (Boltanski, Luc, Les cadres - la formation d'un groupe social). De fa[c]to, falam muito pouco d[a] sua situação profissional mas bastante d[as] suas formações e d[os] seus proje[c]tos, até mesmo d[a] sua a[c]tividade exterior, como o montador-ele[c]tricista que, tendo obtido um diploma de ele[c]tr[ó]nica por correspondência (...) conserta televisões todos os sábados e nas suas férias.


Portanto [a] sua identidade está desdobrada da seguinte forma: a falsa identidade, a identidade oficial, é a que os outros associam à sua situação profissional a[c]tual, ao cargo que ocupam, ao grupo ao qual não se sentem "realmente" pertencer. [A] sua verdadeira identidade - para si - é a que perseguem por meio de suas formações ou a[c]tividades culturais e cuja busca só não é mais obstinada porque já a encontraram encoberta [na] sua origem social ou [no] seu entorno familiar. Com frequ[ê]ncia [o] seu grupo de referência também é [o] seu grupo de origem: por isso, eles [podem utilizar essa] identidade virtual para melhor se distanciar das identidades oficiais que lhes podem ser atribuídas - "a autenticidade que os define com exclusividade é o que faz com que escapem à categoria por cima" (Boltanski, idem).


(...) As relações que es[t]es assalariados assim desdobrados mantêm com [os] seus superiores são ambivalentes: reticentes, até mesmo rebeldes, a toda [a] forma de comportamento autoritário, declaram-se, com frequ[ê]ncia, participativos em toda [a] iniciativa que visa a atenuar o cará[c]ter rotineiro do trabalho ou os entraves burocráticos da organização. Aprovam o espírito das experiências em curso e em geral participam dos grupos organizados nessa ocasião. Às vezes até se apresentam como parceiros a[c]tivos d[os] seus responsáveis [nas] suas funções de animador: valorizam o diálogo, as discussões, as iniciativas destinadas a aumentar a autonomia dos executores. mas também são muito críticos em relação à persistência dos modeos de gestão herdados do sistema anterior e que perduram nas experiências em curso. Tornam-se até mesmo abertamente "vindicativos" quando os contra-mestres lhes parecem incapazes de colocar em prática os proje[c]tos participativos ou racionalizadores da empresa. Es[t]a relação pode assumir uma forma conflituosa quando a "competência" d[os] seus chefes é explicitamente questionada. Devem, então, mobilizar redes externas ao serviço, até mesmo recorrer à arbitragem de responsáveis superiores, para evitar entrar em enfrentamentos pessoais ameaçadores. Es[t]es incidentes alimentam o processo de rotulagem de que às vezes são obje[c]to, reforçando, dessa forma, [a] sua dilaceração identitária. É assim que alguns forjam para si, sob pressão de outrem, essa "subcultura desviante" que lhes permite compartilhar com uma rede de semelhantes a mesma postura crítica a os mesmos proje[c]tos ou fantasias de [saír da] empresa.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Integrados, vulneráveis, desafiliados - condições sociais na modernidade avançada

Imagem extraída de: http://farm4.static.flickr.com/3295/2653127597_cb5dd7a486.jpg?v=1215637101

[Este post relaciona-se com os pontos 2.1.3. e 2.1.4. da U.C.]
Interpretar as dinâmicas sócio-identitárias nas sociedades de modernidade avançada envolve, necessariamente, uma compreensão das modalidades de integração (ou não integração) na estrutura social destas mesmas sociedades. Erigindo o trabalho como pedra de toque da sua análise, na medida em que é o trabalho que i) garante (ainda que provisoriamente) um lugar na divisão social do trabalho e ii) propicia a constituição de sociabilidades e de protecções diversas contra as incertezas da existência, Robert Castel estabelece uma tipologia analítica extremamente fecunda para analisarmos parte daquela dinâmica das identidades. O sociólogo francês distingue três grandes categorias de pessoas, de acordo com a sua posição face a 'zonas' de coesão social que definem, nestas sociedades, uma integração laboral/profissional segura e redes de sociabilidades e protecções consolidadas: os integrados, os vulneráveis e os desafiliados. Trata-se, precisamente, de distinguir, desde logo, graus de distanciamento face a estas 'zonas' de coesão. Assim, estamos tanto mais distantes delas quanto mais longe estamos dos integrados e mais próximos dos desafiliados. Mas, mais do que isso, trata-se de introduzir uma nova forma de entender a problemática da integração: Castel não fala de 'excluídos' para designar os que estão fora das 'zonas' de coesão, mas de desafiliados: a palavra fala por si mesma. São, não apenas aqueles que estão privados destes ou daqueles bens, mas ainda os que se desligaram, os que romperam os laços sociais com o sistema societal dominante. Talvez pessoas cuja identidade social se defina sobretudo pela ausência, isto é, pelo não reconhecimento no olhar do outro, pela invalidação social.
"Não penso (...) o trabalho enquanto relação técnica de produção, mas como um suporte privilegiado de inscrição na estrutura social. Existe, de facto, como se verificará a longo prazo, uma correlação entre o lugar ocupado na divisão social do trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de protecção que 'cobrem' um indivíduo diante dos acasos da existência. Donde a possibilidade de construir o que chamarei, metaforicamente, de 'zonas' de coesão social. Assim, a associação trabalho estável - inserção relacional sólida caracteriza uma área de integração. Inversamente, a ausência de participação em qualquer actividade produtiva e o isolamento relacional conjugam os seus efeitos negativos para produzir a exclusão, ou melhor, como vou tentar mostrar, a desafiliação. A vulnerabilidade social é uma zona intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade. (...) Menos do que situar os inidvíduos nessas 'zonas', trata-se [aqui] de esclarecer os processos que os fazem transitar de uma para outra; por exemplo, passar da integração à vulnerabilidade, ou deslizar da vulnerabilidade para a inexistência social: como são alimentados esses espaços sociais, como se mantêm e, sobretudo, se desfazem os estatutos? É por isso que ao tema da exclusão, hoje abundantemente orquestrado, preferirei o da desafiliação para designar o desfecho desse processo. Não se trata de uma vaidade de vocabulário. A exclusão é estanque. Designa um estado, ou melhor, estados de privação. Mas a constatação de carências não permite recuperar os processos que engendram essas situações. (...) Em contrapartida, falar de desafiliação não é ratificar uma ruptura, mas reconstituir um percurso. A noção pertence ao mesmo campo semântico que a dissociação, a desqualificação ou a invalidação social. Desafiliado, dissociado, invalidado, desqualificado em relação a quê? O problema é exactamente esse. (...) O que aproxima as situações [de desafiliação] é menos uma comunidade de traços que decorrem de uma descrição empírica do que a unidade de uma posição em relação às reestruturações económicas e sociais actuais. São menos excluídos do que abandonados, como se estivessem encalhados na margem, depois da corrente das trocas produtivas se desviar deles. Tudo se passa como se redescobríssemos com angústia uma realidade que, habituados ao crescimento económico, com quase-pleno-emprego, com os progressos da integração e com a generalização das protecções sociais, acreditávamos esconjurada: a existência, novamente, de 'inúteis para o mundo', pessoas e grupos que se tornaram supranumerários diante da actualização das competências económicas e sociais.

Este estatuto é, de facto,completamente distinto daquele que ocupavam até os mais desfavorecidos na versão precedente da questão social. Assim, o trabalhador braçal ou operário especializado das últimas grandes lutas operárias, explorado sem dúvida, não lhe era menos indispensável. Noutros termos, ele continuava vinculado ao conjunto das trocas sociais. Fazia parte, ainda que ocupando o último lugar, da sociedade entendida (...) como um conjunto de elementos interdependentes. Disso resultava que a sua subordinação podia ser pensada dentro do quadro de uma problemática da integração. (...)

Mas os 'supranumerários' nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir competências convertíveis em valores sociais. São supérfluos. Também é difícil ver como poderiam representar uma força de pressão, um potencial de luta, se não actuam directamente sobre nenhum sector nevrálgico da vida social. (...) Se, no sentido próprio do termo, não são mais actores porque não fazem nada de socialmente útil, como poderiam existir socialmente? No sentido, é claro, de que existir socialmente equivaleria a ter, efectivamente, um lugar na sociedade".

in CASTEL, R. (1999).As metamorfoses da questão social - uma crônica do salário. Petrópolis. Editora Vozes.
Sobre Robert Castel, Cfr:

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Coordenação das acções e identidades: pistas de leitura









A pedido de um grupo de mestrandas, que estão a iniciar o seu trabalho sobre a temática da coordenação das acções, acção colectiva e identidades, coloco aqui um primeiro post sobre a temática.


No quadro da sua actividade quotidiana, os actores sociais necessitam de coordenar a sua acção com a de outros actores, em situações e contextos diversificados. Esta coordenação é problemática, mais do que poderia parecer a um olhar ingénuo. Os próprios actores sociais sentem subjectivamente este seu carácter problemático, quando se interrogam, por exemplo, sobre: "Como devo agir neste contexto?"; "Será que vou agir de forma ajustada, ao agir assim?"; "E se, ao agir assim, tudo 'correr mal'?"; etc. Na verdade, coordenar-se com o(s) outro(s) envolve uma permanente monitorização sobre si próprio e sobre os outros. Tentar-se-á explicitar aqui, brevemente, o facto de esta coordenação depender amiúde da existência de diferentes formas convencionais de acção e das correspondentes formas identitárias (por exemplo socioprofissionais) a elas associadas.

De forma muito simplificada, podemos dizer que a coordenação social é possível em função da existência de repertórios de acção, guias mentais de acção, que são comuns aos diferentes actores em situação de interacção. Assim, por exemplo, quando duas pessoas conversam, conseguem fazê-lo porque possuem um conhecimento comum do fundo linguístico que caracteriza a pertença a uma determinada comunidade de falantes (uma língua comum). Da mesma maneira, quando seleccionam e escolhem determinados cursos de acção, fazem-no em função de repertórios de "regras" e convenções que orientam a sua acção e permitem a coordenação dessa mesma acção. É pela agregação de acções individuais realizada a partir de repertórios comuns de convenções sociais, por exemplo, que se constrói, de acordo com este ponto de vista, a acção colectiva. O que é interessante notar, do ponto de vista de uma análise da acção colectiva dos grupos socioprofissionais, é que, no seio da modernidade política, existe um conjunto, limitado, de repertórios de convenções - quadros de referência simultaneamente cognitivos e normativos - que tende a ser mobilizado pelos actores como forma de engrandecimento público da sua ocupação ou profissão e de justificação social da sua existência. Assim, é possível analisar, v.g., os discursos dos porta-vozes - como dos profissionais de uma determinada área profissional - como contendo elementos de diferentes gramáticas justificativas que visam engrandecer e justificar publicamente a respectiva ocupação e profissão. Ora, a inserção da acção dos profissionais nos cursos de acção definidos por estas gramáticas socialmente disponíveis produz diferentes figurações da profissão e, assim, tende a carrear consigo diferentes formas de identidade socioprofissional. Ou seja, é ao inserirem-se em diferentes lógicas de justificação e engrandecimento público da sua profissão que os profissionais constroem uma boa parte da sua identidade profissional. Sem perder de vista que estamos a falar de realidades de extrema complexidade aqui apenas simplisticamente afloradas, podemos dar como exemplo de uma análise deste tipo aquela que José Manuel Resende tem vindo a realizar em torno do professorado do ensino secundário público no período do Estado Novo. Deixa-se abaixo um exemplo desta análise, que sintetiza muito bem estas relações entre: i) formas de justificação pública da profissão, associadas a diferentes ii) gramáticas convencionais, que se plasmam em diferentes iii) concepções, práticas e discursos pedagógicos, que envolvem diferentes iv) sentidos identitários. Note-se que, quando o autor fala em "justificação doméstica" se refere a gramáticas próximas do sentido familiar de relação social traduzido fora da esfera familiar, nomeadamente na esfera pública ou na prática pedagógica; e quando refere a "justificação cívica" se reporta a gramáticas orientadas para as formas de participação dos colectivos no conjunto da sociedade, à orientação para a "vontade geral" e portanto, no caso dos docentes, à forma como estes trabalham nos alunos a sua socialização para, no caso, a vivência civil na orgânica e no Estado corporativos. Segundo José Resende, era na capacidade de compor estes diferentes registos de acção que o 'bom professor' (note-se o sentido identitário da expressão) se definia no período analisado pelo autor.


"(...) Até ao final da segunda grande guerra mundial, o recurso à justificação doméstica aproxima a maior parte dos docentes dos quadros de valores e de normatividade disponíveis no espaço público corporativo. Tal aproximação, porém, não se faz isoladamente. Muitas vezes, os mestres recorrem também à justificação inspirada ou à justificação cívica, ou às duas em simultâneo. Contudo, o recurso a estas justificações, isolada ou combinadamente, não se faz de forma arbitrária. Os sentimentos de protecção e de conversão estão sempre presentes nos sentidos atribuídos às posturas de proximidade física e emocional.

A classificação de 'bons professores' é nessa altura utilizada para definir os docentes que mantêm uma proximidade razoável dos alunos. Esta proximidade revela-se necessária, tanto para a transmissão de modelos de comportamento ajustados às normatividades disponíveis pela doutrina corporativa, como para a aprendizagem dos saberes e da cultura cívica trabalhada de acordo com os propósitos definidos superiormente, mas sempre ajustada às situações escolares experimentadas pelos alunos.

Recorrer à figura do pai ilustra tal razoabilidade nos contactos a manter com os alunos. A tradução, no espaço pedagógico, dos comportamentos paternais facilita a comunicação e regula as relações a manter com a grandeza dos pequenos. O professor 'pater familia' nunca é um pai tirano e severo. Contudo, também não deve ser muito permissivo. Ele é, sobretudo, um pai protector. É justamente o equilíbrio entre estes dois extremos que define o 'bom professor'.

Porém, não é fácil adoptar, na prática pedagógica, este ponto de equilíbrio. A experiência profissional, de um lado, e o apoio dado pelo saber acumulado da psicologia e da psicopedagogia, do outro, facilitam sem dúvida a adopção desta postura de razoabilidade e de bom senso na relação a desenvolver entre o 'bom professor' e os seus discípulos. Mas a experiência prática dita o resto.

(...) A adesão aos valores cívicos pugnados pelo regime opera-se de forma idêntica. A participação nas actividades organizadas pela Mocidade Portuguesa é também um dos meios mais frequentemente utilizados para essa socialização. Por intermédio das suas actuações em domínios tão diversificados como os jogos, o desporto, o campismo, a ginástica, os lavores, mas também através das regras associadas às fardas, às formaturas e aos desfiles paramilitares, os seus dirigentes esforçam-se por 'seduzir' os adolescentes e jovens para as causas e valores defendidos pela doutrina corporativa.

(...) Os professores são instados a trabalhar no sentido de salvaguardarem a memória histórica e cultural do país e, através dela, transmitirem o sentido cívico da defesa da Pátria, os valores das tradições familiares e a difusão da fé cristã.

O recurso à história do país revela-se, na verdade, uma gramática prática indispensável para reavivar a memória, as tradições, a identidade cultural e a defesa da Pátria. Perante uma história quase milenar, seleccionam-se os feitos históricos que permitem trabalhar as interpretações que melhor se encaixam nos reportórios inscritos na doutrina corporativa. Por seu turno, os fracassos e os acontecimentos históricos que fragilizam o tecido social da nação são omitidos oficialmente, e também na escola.

Deste modo, o 'bom professor' é aquele que exibe, na prática, todas estas gramáticas aliadas a todas as propriedades já referidas." in RESENDE, J. (2007). Por uma sociologia política da educação: o xadrez das políticas educativas em Portugal no Estado Novo. Em VIEIRA, M. (Org.). Escola, Jovens e Media. Lisboa. Imprensa de Ciências Sociais. 231-266.
Desta análise, importa reter que:
i) as profissões não são "totalidades" socialmente homogéneas, mas são atravessadas por diferentes lógicas e repertórios de acção, que por vezes entram em tensão e conflito, outras vezes são alvo de um trabalho de composição entre si por parte dos actores sociais;
ii) os diferentes repertórios de acção tendem a ser utilizados pelos actores sociais como formas a) de coordenação das suas acções em grupo; b) de construção social da sua profissão, do ponto de vista da sua valorização e engrandecimento públicos e da sua justificação social;
iii) os diferentes repertórios de acção tendem a favorecer diferentes "figurações identitárias": assim, por exemplo, o professor que utiliza uma justificação "doméstica" pode tender a olhar-se a si próprio e a exigir reconhecimento social como uma figura com características próximas de uma figura paternal.
Sobre este assunto, cfr. também:
RESENDE, J. (2001). Individualidade, Denúncia e Modernidade: o sentido de justiça de um professor no Estado Novo. Fórum Sociológico. nºs 5/6. 101-127.

RESENDE, J. (2000). As qualidades domésticas de educar o povo nos anos 30. Fórum Sociológico. nºs 3/4. 213-237.


Cfr. ainda:



quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Início

Este blogue pretende constituir-se:
i) como espaço de trabalho e de reflexão em torno das temáticas analisadas pelos diferentes grupos de trabalho do módulo de Sociologia da Unidade Curricular (U.C.) de Formação de Adultos e Identidades, do Mestrado em Formação de Adultos e Desenvolvimento Local da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Portalegre. Aqui poderão encontrar-se pistas e orientações de leitura e reflexão (avançadas pelo docente) sobre os textos científicos distribuídos pelos diferentes grupos de trabalho das turmas que frequentam esta U.C., assim como comentários, que se pretendem com valor cognitivo e argumentativo, realizados pelos mestrandos.
ii) como suporte não lectivo ao esclarecimento, pelo docente da U.C., de dúvidas científicas e interpretativas dos alunos.
iii) de modo menos directivo, como fórum de partilha e troca de experiências, reflexões e pontos de vista sobre os aspectos científicos, pedagógicos e relacionais das aulas do módulo de Sociologia da já referida U.C.