domingo, 10 de janeiro de 2010

Exemplos: I

Um outro cruzamento analítico que penso poder ser interessante, no âmbito de uma discussão sobre as questões do desenvolvimento local: conjugar as questões dos regimes de envolvimento na acção com a perspectiva das identidades como trabalhada por Claude Dubar. Vejamos uma situação hipotética, a partir da qual podemos pensar naquilo a que usualmente se apelida de "obstáculos culturais" à acção em parceria orientada para o desenvolvimento.

Numa organização burocrática - por exemplo, uma delegação local de um instituto público -, um trabalhador que era útil mobilizar para uma parceria está rotinizado numa acção em plano. Conhece os trâmites da burocracia estatal, domina tecnicamente as questões atinentes à atribuição de prestações aos utentes, cumpre um horário regular, participa na execução de planos e cumprimento de objectivos definidos superiormente. Vive satisfeito com o seu trabalho; busca o reconhecimento dos outros - colegas de vários níveis hierárquicos e departamentos, chefias - pela sua competência técnica. Filho de uma família de classe média, os pais eram funcionários públicos de grau intermédio. O pai chegou a exercer funções de chefia de serviço por mais de uma década. Desde cedo centrou os seus objectivos profissionais na construção de uma carreira bem enquadrada e definida pelo mérito técnico. Reage negativamente sempre que critérios de ordem não técnica são utilizados para, por exemplo, recrutar ou promover pessoal. Considera que as relações informais nas organizações devem ser claramente separadas dos aspectos que considera estritamente profissionais. Assim, a sua transacção subjectiva assenta numa continuidade entre identidade herdada e visada; representa-se a si mesmo como um profissional com competência técnica, em crescimento numa carreira que deve estar baseada no mérito. Na organização em que trabalha, em geral este reconhecimento é assegurado: o conhecimento formal é nela valorizado, as carreiras estão bem definidas por níveis (designadamente de qualificações) e a informalidade não costuma, salvo excepções, interferir com a análise de desempenho baseada nos aspectos mais formais e racionalizados da acção. A sua transacção objectiva é, por conseguinte, vivida sem grande tensão, pois a identidade atribuída é consonante com a sua subjectividade e, por outro lado, obtém reconhecimento consentâneo com o seu investimento no conhecimento e desempenho formais. Compreende-se assim a sua redução prática do envolvimento profissional à acção num regime de plano: do encontro entre a sua subjectividade e a objectividade da organização em que trabalha, resulta uma certa harmonização dinâmica.

Chamado a participar num projecto de desenvolvimento local, baseado no trabalho em parceria, confronta-se com uma realidade muito diferente. Custa-lhe perceber uma certa ausência de hierarquia e, mais do que isso, a existência de porta-vozes e lideranças amplamente informais e nem sempre baseadas exclusivamente na competência técnica. Pormenores rotineiros a que está habituado e que valoriza, como escrever tudo quanto é relevante do ponto de vista da organização onde trabalha (em ofícios, informações, notas de serviço, pareceres...) são ostensivamente descurados. Entende que se devam ouvir os destinatários sobre as intervenções a assumir, mas desconfia sistematicamente das suas razões, sobretudo quando estes acusam a organização em que trabalha de um certo excesso de formalismo burocrático. Nestes momentos, olha frequentemente para os lados e não compreende por que não reagem os seus "colegas" de parceria. Por outro lado, já partiu para o processo com forte desconfiança face ao mesmo: como poderá a parceria revelar-se eficaz se as decisões são demasiado "democratizadas" e informais, sempre ocupadas em ouvir várias pessoas em lugar de agir, sempre adaptadas a cada caso concreto? Parece-lhe que isto, no limite, põe em causa uma certa justiça definida pelo facto de a intervenção pública dever ser aplicada uniformemente, sem adaptações especiais, que lhe soam um pouco a "favorecimento". Ademais, esta ideia de adaptabilidade permanente incomoda-o: está habituado a planos bem definidos, até ao ínfimo detalhe e esta forma fluida de trabalho sobre o futuro cria-lhe ansiedade, pois este futuro parece-lhe incerto na ausência de planos pormenorizados e realizados pelos mais "competentes".

A dada altura, não obstante estas suas predisposições negativas, é convocado para animar um grupo de trabalho no âmbito da parceria, dedicado à área de intervenção do organismo em que trabalha. Sente-se desconfortável e sem saber o que fazer; por outro lado, sente um certo mal-estar por não partilhar dos "valores" dos parceiros. Mas acaba por aceitar, pois a direcção regional do seu organismo, previamente contactada, transmite-lhe essa incumbência.

Gera-se um conflito identitário: num momento, o espaço objectivo de reconhecimento que permitia uma harmonização dinâmica da sua vida profissional deixa de ser único e vê-se confrontado com uma realidade em que as pessoas se envolvem na acção de um modo mais informal, num trabalho em rede, horizontal, adaptável. "Eles" funcionam num regime dominantemente familiar; ele está rotinizado numa acção em plano e não conhece outra, no plano profissional. Isto causa sofrimento a este profissional e pode ser um entrave ao bom funcionamento do grupo de trabalho que é suposto animar.