quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A identidade - entre a narrativa biográfica e a imagem fugaz



Imagem extraída de: http://www.yapi.com.tr/V_Images/2007/sektorel/52059-1.jpg


Jean-Claude Kauffmann alarga e aprofunda o conceito de identidade trabalhado por Claude Dubar. Assim, olhando para a transacção subjectiva realizada pelo indivíduo, Kauffmann diz-nos que ela se configura em termos de continuidade e ruptura, é certo, mas que importa também acrescentar a esta primeira uma dinâmica adicional.


Segundo este autor, a identidade não é a mesmidade absoluta (como a identidade entre dois números iguais), mas desde logo um processo de construção narrativa de si próprio (ipseidade). Assim, a identidade não é uma substância, mas um elemento de coerência num conjunto diversificado de imagens resultantes de um percurso de vida. A identidade como construção narrativa, que representa a busca individual de um sentido para a vida e também uma tentativa constante de constituição de um ego consistente, faz-se, porém, a partir de "materiais" fragmentários, por vezes de pequenas e fugazes identificações, de imagens de si momentâneas e que a todo o momento confrontam o indivíduo com a sua própria diversidade.


Para Kauffmann, por conseguinte, importa integrar na análise das identidades estas outras identificações - chamemos-lhes imediatas - e perceber como os esforços de integração das mesmas numa narrativa de vida são encetados pelo indivíduo, em moldes que possam significar, nos termos de Dubar, uma continuidade ou uma ruptura.


Kauffmann distingue, pois, a identidade biográfica, cuja principal "função" é a constituição de um sentido geral, uma narrativa de si-próprio, da identidade imediata, cuja "função" é pragmática: num contexto de acção, é uma imagem que o ego se faz de si próprio em ordem a seleccionar uma via de acção. Um exemplo desta segunda é o da confrontação, subjectiva e momentânea, de imagens de si próprio contrastadas, que põem em cena representações de si mesmo oriundas de diferentes sistemas normativos, como quando o indivíduo, perante uma tarefa difícil, se experimenta a si mesmo, de um lado, como trabalhador aplicado, sério, esforçado e, de outro lado, como alguém orientado pelo prazer, que se pergunta porque as pessoas se sacrificam a tarefas tão insignificantes como aquela, porque não vivem antes a vida... e decide em seguida, a partir de uma das imagens de si próprio.


A distinção entre estes dois "registos" identitários é muito importante de um ponto de vista metodológico: ela aconselha-nos a diferenciar a identidade narrativa que nos é contada, digamos, por um entrevistado, das formas identitárias mais fugazes e operatórias que ele pode mobilizar em contextos específicos de acção.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Partilha III

Imagem retirada de http://www.ssrc.org/calhoun/about/

Para aqueles que compreendem bem a língua inglesa, uma excelente entrevista de um grande sociólogo americano, Craig Calhoun (em áudio), acerca da crise económica que estamos a viver e as respectivas causas. Calhoun, além da análise que desenvolve, defende a necessidade de se recuperar a importância de noções como "bem comum" (público) e suas articulações com as formas legítimas de governo. Muito embora seja uma entrevista com mais de um ano, permanece actual, nomeadamente para quem deseje compreender um pouco melhor a nossa contemporaneidade.



http://www.ssrc.org/calhoun/2008/09/26/episode-6-finding-the-public-interest-in-response-to-the-financial-crisis/

Partilha II

Deixo abaixo a ligação para um texto com interesse.

http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628da0d4e27b_1.pdf

domingo, 10 de janeiro de 2010

Exemplos: II

O processo de desafiliação, de que fala Robert Castel, é um processo de perda progressiva do(s) laço(s) social(is), associado à saída de uma "zona" de coesão social definida pela integração laboral e ao desenvolvimento de sociabilidades mais correlacionadas com o trabalho do que podem parecer a uma análise mais apressada.

Segundo Castel, trata-se de um processo de invalidação social. Retraduzindo esta questão na terminologia de Claude Dubar, diríamos que a transacção objectiva se encontra, em primeiro lugar, num estado tensional com a transacção subjectiva, na medida em que o indivíduo, na sua subjectividade, inicia um processo pelo qual obtém cada vez menos reconhecimento no olhar do outro e, correlativamente a atribuição identitária feita pelo(s) outro(s) segue o caminho da desvalorização. Finalmente, a transacção objectiva chega a um estado que talvez se possa classificar como indefinido (passe o paradoxo), ou mesmo (será possível?) inexistente, na medida em que o seu pressuposto é a ausência: o sujeito torna-se invisível ao olhar do outro. Falando-se de transacção, de troca, ela parece escapar-se insidiosamente desta situação. Este registo é crítico, ainda, porque a voz do indivíduo tende a anular-se. Por outras palavras, a sua possibilidade de reivindicação identitária tende para zero.

O trabalho de reabilitação de pessoas nesta condição, parece-me, apenas tem a ganhar por ser um trabalho de proximidade. Um trabalho de familiarização interpessoal, numa lógica do cuidado - ou seja, uma intervenção em que, como bem diz Antónia Perdigão, o cuidado é a base da intervenção profissional e não a intervenção profissional a base do cuidado. Como resulta claro, esta intervenção conduz o técnico a envolver-se na acção num regime de familiaridade, talvez o mais propício a redescobrir, por sob os sedimentos ásperos das marcas de um processo desqualificante e, num certo sentido, aniquilador, a história de uma vida que, como outras vidas, busca sentido identitário e, talvez ainda, o reconhecimento no olhar do outro. Isto é, também - a reconstituição do(s) laço(s) social(is).

Exemplos: I

Um outro cruzamento analítico que penso poder ser interessante, no âmbito de uma discussão sobre as questões do desenvolvimento local: conjugar as questões dos regimes de envolvimento na acção com a perspectiva das identidades como trabalhada por Claude Dubar. Vejamos uma situação hipotética, a partir da qual podemos pensar naquilo a que usualmente se apelida de "obstáculos culturais" à acção em parceria orientada para o desenvolvimento.

Numa organização burocrática - por exemplo, uma delegação local de um instituto público -, um trabalhador que era útil mobilizar para uma parceria está rotinizado numa acção em plano. Conhece os trâmites da burocracia estatal, domina tecnicamente as questões atinentes à atribuição de prestações aos utentes, cumpre um horário regular, participa na execução de planos e cumprimento de objectivos definidos superiormente. Vive satisfeito com o seu trabalho; busca o reconhecimento dos outros - colegas de vários níveis hierárquicos e departamentos, chefias - pela sua competência técnica. Filho de uma família de classe média, os pais eram funcionários públicos de grau intermédio. O pai chegou a exercer funções de chefia de serviço por mais de uma década. Desde cedo centrou os seus objectivos profissionais na construção de uma carreira bem enquadrada e definida pelo mérito técnico. Reage negativamente sempre que critérios de ordem não técnica são utilizados para, por exemplo, recrutar ou promover pessoal. Considera que as relações informais nas organizações devem ser claramente separadas dos aspectos que considera estritamente profissionais. Assim, a sua transacção subjectiva assenta numa continuidade entre identidade herdada e visada; representa-se a si mesmo como um profissional com competência técnica, em crescimento numa carreira que deve estar baseada no mérito. Na organização em que trabalha, em geral este reconhecimento é assegurado: o conhecimento formal é nela valorizado, as carreiras estão bem definidas por níveis (designadamente de qualificações) e a informalidade não costuma, salvo excepções, interferir com a análise de desempenho baseada nos aspectos mais formais e racionalizados da acção. A sua transacção objectiva é, por conseguinte, vivida sem grande tensão, pois a identidade atribuída é consonante com a sua subjectividade e, por outro lado, obtém reconhecimento consentâneo com o seu investimento no conhecimento e desempenho formais. Compreende-se assim a sua redução prática do envolvimento profissional à acção num regime de plano: do encontro entre a sua subjectividade e a objectividade da organização em que trabalha, resulta uma certa harmonização dinâmica.

Chamado a participar num projecto de desenvolvimento local, baseado no trabalho em parceria, confronta-se com uma realidade muito diferente. Custa-lhe perceber uma certa ausência de hierarquia e, mais do que isso, a existência de porta-vozes e lideranças amplamente informais e nem sempre baseadas exclusivamente na competência técnica. Pormenores rotineiros a que está habituado e que valoriza, como escrever tudo quanto é relevante do ponto de vista da organização onde trabalha (em ofícios, informações, notas de serviço, pareceres...) são ostensivamente descurados. Entende que se devam ouvir os destinatários sobre as intervenções a assumir, mas desconfia sistematicamente das suas razões, sobretudo quando estes acusam a organização em que trabalha de um certo excesso de formalismo burocrático. Nestes momentos, olha frequentemente para os lados e não compreende por que não reagem os seus "colegas" de parceria. Por outro lado, já partiu para o processo com forte desconfiança face ao mesmo: como poderá a parceria revelar-se eficaz se as decisões são demasiado "democratizadas" e informais, sempre ocupadas em ouvir várias pessoas em lugar de agir, sempre adaptadas a cada caso concreto? Parece-lhe que isto, no limite, põe em causa uma certa justiça definida pelo facto de a intervenção pública dever ser aplicada uniformemente, sem adaptações especiais, que lhe soam um pouco a "favorecimento". Ademais, esta ideia de adaptabilidade permanente incomoda-o: está habituado a planos bem definidos, até ao ínfimo detalhe e esta forma fluida de trabalho sobre o futuro cria-lhe ansiedade, pois este futuro parece-lhe incerto na ausência de planos pormenorizados e realizados pelos mais "competentes".

A dada altura, não obstante estas suas predisposições negativas, é convocado para animar um grupo de trabalho no âmbito da parceria, dedicado à área de intervenção do organismo em que trabalha. Sente-se desconfortável e sem saber o que fazer; por outro lado, sente um certo mal-estar por não partilhar dos "valores" dos parceiros. Mas acaba por aceitar, pois a direcção regional do seu organismo, previamente contactada, transmite-lhe essa incumbência.

Gera-se um conflito identitário: num momento, o espaço objectivo de reconhecimento que permitia uma harmonização dinâmica da sua vida profissional deixa de ser único e vê-se confrontado com uma realidade em que as pessoas se envolvem na acção de um modo mais informal, num trabalho em rede, horizontal, adaptável. "Eles" funcionam num regime dominantemente familiar; ele está rotinizado numa acção em plano e não conhece outra, no plano profissional. Isto causa sofrimento a este profissional e pode ser um entrave ao bom funcionamento do grupo de trabalho que é suposto animar.

Acção em contexto de promoção do desenvolvimento local (versão corrigida)

Escrevo este post para dar um exemplo da pertinência analítica de alguns dos conceitos que explicitei nesta página, quando se trata de pensar numa área fundamental do curso de mestrado, o desenvolvimento local.

É relativamente consensual a opinião, entre as pessoas das ciências sociais mas também entre múltiplos agentes de desenvolvimento local, que o desenvolvimento deve ser integrado, isto é, pensado e agido em função da melhoria de condições de diversos âmbitos - ambiental, económico, social, cultural. Não menos consensual é a ideia de que uma estratégia de desenvolvimento local envolve tendencialmente a construção de formas de organização da acção dos agentes implicados no desenvolvimento diferentes das formas de organização mais rotineiras das organizações locais, sobretudo estatais. Esta diferença nota-se particularmente quando se dá o confronto entre uma acção centrada numa racionalidade burocrática, característica da maioria das organizações públicas com intervenção, mais ou menos directa, no desenvolvimento local e uma acção centrada num trabalho de proximidade, mais flexível e adaptado aos contextos em que se pretende intervir e, nomeadamente, às necessidades particulares dos contextos em que se pretende intervir.

Esta questão pode ser pensada a partir dos conteúdos da U.C. relativos à integração de diferentes regimes dinâmicos nas organizações.

Na verdade, a resposta, ao nível da organização do trabalho para o desenvolvimento, que tem vindo a ser dada por muitas entidades a nível local e a qual tem, por vezes, logrado algum sucesso interventivo, é a intervenção numa lógica de parceria. O que é interessante na parceria, do ponto de vista da sua capacidade para organizar respostas em contextos complexos de acção (como lidar com a toxicodependência, promover a saúde das populações, educar adultos ou construir quadros de integração juvenil) é a sua flexibilidade organizativa, que permite uma intervenção para o desenvolvimento de geometria variável, organizável e reorganizável com baixos custos e esforço, em função das mudanças na realidade; e a sua capacidade integradora: por colocar a trabalhar em conjunto pessoas e organizações com vocações e competências diversificadas, facilmente propicia respostas integradas a fenómenos complexos - ao contrário da resposta burocrática, tendencialmente departamentalizada e, como tal, centrada num único domínio de intervenção (por exemplo, a acção social). É frequente, por conseguinte, encontrarmos parcerias capazes de se reorganizarem em função das necessidades de intervenção e capazes de responderem a problemas que, por exemplo, envolvam uma resposta integrada ao nível da saúde, da formação de adultos e da acção social. Finalmente, a parceria pode com facilidade integrar o ponto de vista dos respectivos destinatários, o que contribui para destecnicizar e democratizar a própria intervenção e facilitar a apropriação dos respectivos resultados pelas populações destinatárias.

Ora, do ponto de vista do confronto entre diferentes regimes de acção, quando pretendemos fazer organizações burocratizadas envolverem-se num trabalho em parceria, deparamo-nos frequentemente com tensões entre os mesmos. Isto, porque temos, de um lado, um regime de acção em plano, estruturado em organizações burocratizadas, orientadas para a eficiência, hierarquizadas, com circuitos formalizados de circulação de informação e de tomada de decisão, orientadas para a previsibilidade e o planeamento, rotinizadas e cujos profissionais se distinguem - idealmente - pela competência técnica (é evidente que esta é uma caracterização abstracta e que, em cada caso concreto, as organizações são mais complexas). De outro lado, uma acção, em parceria, com componentes fortes (não exclusivas) de um regime familiar: organização do trabalho com uma forte personalização da acção, não hierarquizada na base da competência técnica, informal, sem circuitos longos e definidos de tomada de decisão, mas redes e sociabilidades informais, centrada no fazer mais do que no planeamento em detalhe, vocacionada para um trabalho de proximidade.

O que também é relevante notar é que a acção em parceria parece constituir-se não só num regime familiar, mas através de um trabalho de composição entre diferentes regimes: se a parceria de desenvolvimento local visa destecnicizar, flexibilizar e tornar integradora a acção organizada para a constituir numa modalidade de proximidade, ela não deixa de necessitar de ser planeada (idealmente, de forma estratégica - planeamento estratégico), de rotinizar minimamente práticas e estabelecer um mínimo de formalização nos circuitos de circulação de informação e tomada de decisão, bem como um mínimo de eficiência e de tecnicidade. Tendo em conta que uma sociologia dos regimes de envolvimento na acção nos diz que a capacidade de envolvimento com sucesso em diferentes regimes de acção está associada à posse de diferentes competências, podemos então pensar que o perfil do agente de desenvolvimento local que se envolve num trabalho de dinamização de parcerias deverá ser o de alguém capaz de se "movimentar" nestes diferentes regimes e de minimizar as suas tensões. Nomeadamente, as tensões entre os aspectos mais formais da acção em plano e os aspectos mais informais da acção num regime de proximidade que a parceria necessariamente envolve. Alguém capaz de alternar entre proximidade familiar e generalização técnica; entre o domínio dos saberes informais, práticos e tácitos e o domínio dos saberes formalizados, teóricos e explícitos; entre a negociação em condições informais e a negociação em circuitos formais e especializados - e, também, deverá ser alguém capaz de fazer surgir, na prática, as virtualidades da composição activa de intervenções que integrem estas e outras dimensões dos diferentes regimes de acção. Assim, por exemplo, alguém com um perfil exclusivamente técnico pode nem sempre possuir o perfil indicado, da mesma maneira que alguém com um perfil mais exclusivamente "voluntarista" e habituado ao trabalho de assistência e proximidade às populações também não. Importante talvez seja, realmente, um perfil que estabeleça um bom compromisso entre estas características e as competências que lhes subjazem. Por exemplo, um(a) assistente social que é capaz de adaptar, localmente, um normativo legal, complementando uma prestação definida por Lei com recursos locais, mobilizados por uma rede de sociabilidade, os quais garantem um maior conforto da pessoa destinatária, que foi previamente ouvida nesse sentido, num registo de proximidade. Como um(a) animador(a) sociocultural que mobiliza uma rede de parceiros locais para intervirem ao nível da formação informal dos estudantes de uma escola (por exemplo para desenvolver competências sociais), nos espaços de recreio, ao mesmo tempo que consegue discutir e negociar com o corpo docente aspectos técnicos e pedagógicos da sua intervenção e compreender e discutir com profundidade técnica o seu papel no Projecto de Escola.


Note-se, finalmente, que, em concreto, esta leitura terá sempre de ser especificada: quer a "competência técnica", quer as "competências de proximidade", terão diferenças consoante as áreas de intervenção. Quer a um nível, quer a outro, não é a mesma coisa intervir na área da saúde ou do emprego. Não obstante, parece importante não perder de vista o aspecto mais transversal de reunião de competências de diferentes âmbitos (regimes), que permitem um verdadeiro trabalho de projecto em parceria.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Integração de diferentes regimes dinâmicos nas organizações


















Para abordar o tema do Programa da UC que titula este post, dedicarei algumas palavras à sociologia pragmática, nomeadamente num dos seus capítulos-chave, a sociologia dos regimes de envolvimento na acção (Thévenot, 2006).

De acordo com os autores que vêm trabalhando este quadro teórico (Thévenot, op.cit., Boltanski e Thévenot, 1991), os indivíduos, quando procuram coordenar a sua acção com a de outros, fazem-no através de diferentes “modos de entrada” nessa mesma acção. Para Laurent Thévenot, estes “modos” podem ser adequadamente entendidos como diferentes regimes de envolvimento na acção. Diz-nos o autor (Cfr. op.cit., traduções do francês da minha responsabilidade): "De forma diferenciada dos modelos de acção que colocam o acento sobre o actor, sobre a sua colectividade ou individualidade, a sua consciência ou inconsciência, a sua reflexão ou irreflexão, a nossa caracterização dos regimes de envolvimento põe em evidência a moldagem conjunta da pessoa e do seu ambiente, que requer o seu envolvimento".

Os principais eixos diferenciadores dos diversos regimes de envolvimento na acção, no seio desta perspectiva, são, diz-nos Thévenot, a avaliação ou julgamento que os indivíduos fazem, em situação, sobre a sua própria conduta - procurando uma acção conveniente à situação específica em que se encontram - e o apoio que essa avaliação ou julgamento encontra na própria situação (Cfr. Idem): "Distinguimos as formas pelas quais a realidade é experimentada e a forma pela qual a conduta é avaliada em cada uma delas. A noção de conveniência (…) é empregue para distinguir as avaliações do envolvimento segundo regimes, porque ela oferece-se a graduações. Ela conduz a caracterizar a dinâmica de cada um dos regimes a partir da forma de avaliação que a governa e do género de apoio que ela encontra no ambiente material do agente".

Sobre estes parâmetros analíticos, Thévenot identifica três diferentes regimes de envolvimento na acção, os quais variam entre um modo de envolvimento mais íntimo e pessoal e um espaço de constrangimentos convencionais típicos da esfera pública, mais geral e racional. Assim, para o autor francês, temos três grandes regimes de envolvimento, distribuídos sobre um eixo que vai do singular ao geral: o regime familiar, o regime de plano e o regime público, diferenciados em função do julgamento feito pelo indivíduo em situação sobre a forma de coordenação conveniente à mesma num eixo de gradações de generalidade das relações entre os seres em presença.

O autor define assim o primeiro destes regimes (Thévenot, 2006): "No regime de envolvimento familiar, o bem mantido está localizado e é personalizado. (…) O bem-estar experimentado na comodidade de um entorno depende estreitamente da pessoa que se acomodou ao mesmo e do desenvolvimento da familiarização efectuado perto de um meio moldado pelo uso".

Temos, assim, um mundo familiar, no qual os agentes se envolvem na acção de uma forma muito "próxima". Este envolvimento não passa por executar esforços de colocação dos seres (humanos ou objectos) em presença sob qualquer princípio de equivalência quando agem. Por outro lado, o registo de proximidade pode ser exemplificado com as minudências que utilizamos para trabalhar com um objecto ou pessoas que conhecemos profundamente, como quando eu bato no tablier do meu carro, tendo uma expectativa razoável de que a luz que se apagara do velocímetro acenda após este gesto, que já vi ser eficaz anteriormente. Este mesmo gesto seria algo que não teria facilidade de explicar a outra pessoa, até por constrangimentos de ordem moral ("não se bate assim no carro, até porque se estraga!"). Aqui, mesmo a linguagem verbal não é analítica (por exemplo entre duas pessoas) e pode parecer até estranha, dado o seu carácter intrinsecamente generalizador (a palavra "copo" designa todos os copos possíveis e há sempre um desvio face a este copo concreto, que tenho na mão e que é o referente que parece escapar à linguagem, num registo familiar).

O regime de acção em plano, por seu turno, envolve uma subida em generalidade das relações entre os seres em presença, na medida em que se desloca para lá do círculo das solidariedades construídas pelo uso íntimo (Cfr. idem): O regime de acção em plano corresponde a um nível de envolvimento tão comum que corre o risco de se tornar invisível na especificidade da sua apreensão dos eventos enquanto condutas humanas. (…) É a promessa que conhece uma modalidade mais formalizada nas organizações: o projecto. O envolvimento em plano alarga-se ainda tendo ao ter-se em conta o outro na sua própria capacidade de agente individual envolvido no seu plano. O envolvimento é, então, estratégico, levando outro(s) em conta, assimetricamente.

O regime de plano aproxima-se, frequentemente, de uma acção funcional face a um projecto mais ou menos explícito. Neste caso, os objectos e os humanos tendem a ser trabalhados na acção em função das expectativas incorporadas na situação e que remetem para "planos" mais ou menos partilhados pelos intervenientes (que podem ser "outros generalizados", na perspectiva de George H. Mead, como colectivos mais ou menos generalizados - classe, partido, por exemplo -, embora isto seja mais típico do regime público; o "ser" social mais próprio, aqui, é a organização).

Finalmente, o regime de maior generalidade na forma como os indivíduos julgam e coordenam as suas acções em situações específicas é o regime público. "Aqui, o envolvimento é apreciado segundo uma ordem de grandeza legítima que se apoia numa especificação do bem comum (…). A realidade de nada faz prova senão quando é publicamente qualificada segundo esta grandeza em termos de preço, de eficácia, de renome, etc. A pessoa encontra garantias para o seu envolvimento na disposição das coisas qualificadas, num dispositivo do seu agenciamento coerente. O agente é uma pessoa qualificada segundo a grandeza, não apenas um simples indivíduo. O seu poder legítimo repousa nesta qualificação que marca a sua participação no bem comum. Uma coordenação de um conjunto complexo de acções implicando ajustamentos recíprocos à distância, com actores anónimos, faz advir uma procura de garantia pública, correspondente a este regime" (Cfr. Thévenot. op.cit.).

Livros:

BOLTANSKI, Luc, THÉVENOT, Laurent, De la justification. Les économies de la grandeur, Paris, Éditions Gallimard, 1991

THÉVENOT, Laurent, L’action au pluriel – sociologie des régimes d’engagement, Paris, Éditions La Découverte, 2006

O que é interessante aqui é darmo-nos conta da forma como estes diferentes regimes de acção são mobilizados pelas pessoas nas organizações de trabalho, como eles geram tendenciais conflitos e tensões entre si e como as pessoas se envolvem num trabalho de crítica, negociação e construção de acordos que permitam compor as determinação dos diferentes regimes entre si. Centremo-nos em apenas dois destes regimes, o familiar e o de plano.

Por exemplo, num regime familiar as pessoas tendem a envolver-se no trabalho num registo personalizado e, em grande medida, informal. O tipo de saber que mobilizam para o seu trabalho é um saber também ele informal, localizado, amplamente tácito e sem planos e objectivos formalizados. Num regime de plano, por sua vez, o envolvimento no trabalho é mais impessoal, formal; o tipo de saber mobilizado é tendencialmente o saber formal, explícito; o trabalho é altamente planeado e tendencialmente traduzido em objectivos formais.
Estes diferentes registos de acção podem ser tensionais entre si - por exemplo, pode haver trabalhadores, habituados a um regime familiar, que reagem criticamente perante os saberes "teóricos" e "técnicos" daqueles que agem num registo mais formal e, inversamente, estes últimos podem criticar no trabalho dos primeiros uma falta de sistematicidade no seu trabalho, uma tendência para o trabalho casuístico, mais dificilmente generalizável a outros trabalhadores/organizações, "desqualificado", etc.
Por outro lado, estes regimes também podem ser, como dissemos, compostos entre si - por exemplo, quando um profissional cujo poder organizacional repousa amplamente nos saberes formais exclusivos da sua profissão, um médico, tenta adaptar, personalizar, ajustar a sua intervenção técnica a cada caso concreto, ouvindo o doente em profundidade e tentando explicitar as suas soluções técnicas numa linguagem e num registo de proximidade com o doente.