quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Integrados, vulneráveis, desafiliados - condições sociais na modernidade avançada

Imagem extraída de: http://farm4.static.flickr.com/3295/2653127597_cb5dd7a486.jpg?v=1215637101

[Este post relaciona-se com os pontos 2.1.3. e 2.1.4. da U.C.]
Interpretar as dinâmicas sócio-identitárias nas sociedades de modernidade avançada envolve, necessariamente, uma compreensão das modalidades de integração (ou não integração) na estrutura social destas mesmas sociedades. Erigindo o trabalho como pedra de toque da sua análise, na medida em que é o trabalho que i) garante (ainda que provisoriamente) um lugar na divisão social do trabalho e ii) propicia a constituição de sociabilidades e de protecções diversas contra as incertezas da existência, Robert Castel estabelece uma tipologia analítica extremamente fecunda para analisarmos parte daquela dinâmica das identidades. O sociólogo francês distingue três grandes categorias de pessoas, de acordo com a sua posição face a 'zonas' de coesão social que definem, nestas sociedades, uma integração laboral/profissional segura e redes de sociabilidades e protecções consolidadas: os integrados, os vulneráveis e os desafiliados. Trata-se, precisamente, de distinguir, desde logo, graus de distanciamento face a estas 'zonas' de coesão. Assim, estamos tanto mais distantes delas quanto mais longe estamos dos integrados e mais próximos dos desafiliados. Mas, mais do que isso, trata-se de introduzir uma nova forma de entender a problemática da integração: Castel não fala de 'excluídos' para designar os que estão fora das 'zonas' de coesão, mas de desafiliados: a palavra fala por si mesma. São, não apenas aqueles que estão privados destes ou daqueles bens, mas ainda os que se desligaram, os que romperam os laços sociais com o sistema societal dominante. Talvez pessoas cuja identidade social se defina sobretudo pela ausência, isto é, pelo não reconhecimento no olhar do outro, pela invalidação social.
"Não penso (...) o trabalho enquanto relação técnica de produção, mas como um suporte privilegiado de inscrição na estrutura social. Existe, de facto, como se verificará a longo prazo, uma correlação entre o lugar ocupado na divisão social do trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de protecção que 'cobrem' um indivíduo diante dos acasos da existência. Donde a possibilidade de construir o que chamarei, metaforicamente, de 'zonas' de coesão social. Assim, a associação trabalho estável - inserção relacional sólida caracteriza uma área de integração. Inversamente, a ausência de participação em qualquer actividade produtiva e o isolamento relacional conjugam os seus efeitos negativos para produzir a exclusão, ou melhor, como vou tentar mostrar, a desafiliação. A vulnerabilidade social é uma zona intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade. (...) Menos do que situar os inidvíduos nessas 'zonas', trata-se [aqui] de esclarecer os processos que os fazem transitar de uma para outra; por exemplo, passar da integração à vulnerabilidade, ou deslizar da vulnerabilidade para a inexistência social: como são alimentados esses espaços sociais, como se mantêm e, sobretudo, se desfazem os estatutos? É por isso que ao tema da exclusão, hoje abundantemente orquestrado, preferirei o da desafiliação para designar o desfecho desse processo. Não se trata de uma vaidade de vocabulário. A exclusão é estanque. Designa um estado, ou melhor, estados de privação. Mas a constatação de carências não permite recuperar os processos que engendram essas situações. (...) Em contrapartida, falar de desafiliação não é ratificar uma ruptura, mas reconstituir um percurso. A noção pertence ao mesmo campo semântico que a dissociação, a desqualificação ou a invalidação social. Desafiliado, dissociado, invalidado, desqualificado em relação a quê? O problema é exactamente esse. (...) O que aproxima as situações [de desafiliação] é menos uma comunidade de traços que decorrem de uma descrição empírica do que a unidade de uma posição em relação às reestruturações económicas e sociais actuais. São menos excluídos do que abandonados, como se estivessem encalhados na margem, depois da corrente das trocas produtivas se desviar deles. Tudo se passa como se redescobríssemos com angústia uma realidade que, habituados ao crescimento económico, com quase-pleno-emprego, com os progressos da integração e com a generalização das protecções sociais, acreditávamos esconjurada: a existência, novamente, de 'inúteis para o mundo', pessoas e grupos que se tornaram supranumerários diante da actualização das competências económicas e sociais.

Este estatuto é, de facto,completamente distinto daquele que ocupavam até os mais desfavorecidos na versão precedente da questão social. Assim, o trabalhador braçal ou operário especializado das últimas grandes lutas operárias, explorado sem dúvida, não lhe era menos indispensável. Noutros termos, ele continuava vinculado ao conjunto das trocas sociais. Fazia parte, ainda que ocupando o último lugar, da sociedade entendida (...) como um conjunto de elementos interdependentes. Disso resultava que a sua subordinação podia ser pensada dentro do quadro de uma problemática da integração. (...)

Mas os 'supranumerários' nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir competências convertíveis em valores sociais. São supérfluos. Também é difícil ver como poderiam representar uma força de pressão, um potencial de luta, se não actuam directamente sobre nenhum sector nevrálgico da vida social. (...) Se, no sentido próprio do termo, não são mais actores porque não fazem nada de socialmente útil, como poderiam existir socialmente? No sentido, é claro, de que existir socialmente equivaleria a ter, efectivamente, um lugar na sociedade".

in CASTEL, R. (1999).As metamorfoses da questão social - uma crônica do salário. Petrópolis. Editora Vozes.
Sobre Robert Castel, Cfr: